Uma leitura de
NARCISO
obra de Fabricius Nery
Para
o artista não é necessário apenas produzir uma imagem, mas problematizar,
através das próprias criações, qual o status
que goza a imagem no mundo contemporâneo, mundo no qual ele é, também, um
criador de representações. É o que faz Fabricius Nery, numa instigante obra que
denominou Narciso.
Pintada
em janeiro de 2014, a obra retoma o mito de Narciso, ou seja, a história do
jovem que se deixa morrer ao se apaixonar por si mesmo ao se deparar com a
própria imagem refletida num lago.
Nery
retoma o mito criando outra perspectiva iconográfica, inserindo-a na questão
central da vida contemporânea: o sentido da obsessão pela fabricação da própria
imagem e sua consequente adoração como uma problemática de nossos dias.
Dessa
vez, Narciso está diante de um espelho, onde se vê a si próprio fotografando-se
nu, sendo visível no pênis ereto a excitação sexual que é gerada por essa
relação de adoração pela própria imagem e, ainda mais, por sua fabricação.
Além
da foto que faz de si mesmo ao espelho, de corpo inteiro, aparece ainda, fora
do espelho, um dos pés do personagem, indicando que outra camada de realidade se
faz presente no quadro. Como se nós, expectadores, fôssemos partícipes da cena,
quase fotógrafos de nós mesmos, olhando no espelho nossa própria imagem sendo
registrada. Desse inferno ninguém está livre, parece dizer o pintor.
O
quadro vai além, colocando na forma labiríntica de sua construção a ideia de
que é a geração da própria imagem e a observação desse ato que impulsiona, por
si mesmo, o prazer narcísico.
Esse
recurso da interpenetração de várias realidades é um dos elementos fortes da
arte contemporânea e de sua reflexão sobre a realidade fragmentada, enganosa e
labiríntica do mundo. Nery está atento ao que se passa ao seu redor. Para
pensar qual o sentido da imagem no mundo atual, nada melhor para o artista, ele
também fabricador de imagens, do que trazer a figura de Narciso para o centro
do debate.
A
sua tela enfrenta a questão. Para além da geometria do espelho que reflete o
personagem, outras geometrias vão se recortando dentro do quadro, ampliando
essa ideia de que uma imagem não passa de uma sobreposição de camadas da
realidade, que são recortadas e montadas incessantemente como se fossem a
própria “realidade”.
O
procedimento formal de desconstrução das próprias imagens que cria, refletindo
sobre seu valor no mundo atual, não é novo na obra de Fabricius Nery, que tem
adotado o procedimento do recorte em suas telas como um dos elementos de sua
poética. Talvez esteja aí o sentido de sua contemporaneidade. Faz-nos pensar
naquilo que Jean Baudrillard disse da fotografia: “A foto é o que nos aproxima
mais da mosca, de seu olho facetado e de seu voo em linha quebrada.”
O
resultado desse procedimento, em seu Narciso,
é a sensação que o quadro nos transmite de que o que estamos vendo já foi
fotografado e é, ao mesmo tempo, a própria foto no momento em que está sendo feita
e, em seguida, ela já em situação de imagem fixa em um álbum. Isso cria dentro da tela quatro tempos: a
figura do pé aparece no interior do espelho e também fora do espelho, a imagem
que vemos já é a fotografia tirada e revelada e a foto que vemos está fixada no
quadro como se já estivesse contida em algum álbum de fotografias.
O
quadro é, em si mesmo, o registro dessa atividade de se fotografar a si mesmo e
se ver ao mesmo tempo se fotografando e o transformar-se da imagem pronta em
objeto para ser visto pelo próprio criador da imagem e pelos outros, agora
convertidos em expectadores do meu amor próprio, de minha autoimagem
publicitária, de minha adoração narcísica.
A
perspicácia do artista foi somar a esse labirinto de imagens os recortes
geométricos ao qual a figura central se submete. E a representação que vemos é
uma possível fotografia, situada dentro do quadro, sobre a cor vermelho escuro,
recortada por uma geometria que a faz parecer uma foto de álbum. Estamos diante
de uma imagem que acontece no instante em que se faz existir e, ao mesmo tempo,
já condicionada em espaço de possível ou desejada admiração como fotografia de
si mesmo.
A
leitura atual do tema faz-se necessária. Vivemos num tempo onde a produção da imagem
narcísica de si mesmo transformou-se num fetiche absoluto ou em uma neurose
aguda. A adoração da autoimagem, acima de todos os outros valores, é quase o
“espírito de nosso tempo”. Com a vulgarização da fotografia digital ou de
celular, onde todos podem se fotografar o tempo todo e se exibir em redes
sociais como se fossem personagens importantes (para outros narcisos que fazem
e pensam a mesma coisa), a ideia de uma sociedade onde as pessoas estão
apaixonadas por si mesmas é corrente e é necessária sua discussão em qualquer
debate cultural.
A
excitação sexual explícita da figura central, que se fotografa no quadro de
Nery, revela esse amor obsessivo por si mesmo, que toma conta do mundo
contemporâneo, num jogo libidinal doentio. Nada parece dar mais prazer ao
narcisista do que registrar a sua própria imagem e vê-la refletida em algum
lugar. Por isso, fez-se necessário ao pintor criar o desnudamento da figura e
seu obsessivo olhar narcísico, que ao mesmo tempo constrói e admira, para que
se revele esse prazer, esse desejo e essa excitação pela autoimagem que faz do
ato narcísico a raison d´être do
homem contemporâneo.
A
face introspectiva do personagem revela esse estar-se no mundo apenas para si
mesmo, prisioneiro psíquico de um universo fechado ao entorno, alienado daquilo
que não seja a sua própria imagem. É o retrato do gozo por si mesmo num rosto
que quase fecha os olhos num momento de supremo deleite. E esse gozo existe
enquanto imagem, porque tem como auxílio a máquina fotográfica (a flor Narciso
de nossos dias), que registra essa entrega ao orgasmo que a imagem de si
próprio lhe proporciona.
O
que Nery acaba por fazer é revelar, nessa forma sobreposta e entrecortada de
imagens, que “na fotografia as coisas articulam-se por uma operação técnica que
corresponde à articulação de sua banalidade. Vertigem do pormenor perpétuo do
objeto. O que é uma imagem para outra imagem, uma foto para outra foto:
contiguidade fractal, nenhuma relação dialética. Nenhuma “visão de mundo”,
nenhum olhar – a refração do mundo, em seu pormenor, com armas iguais”. (Baudrillard)
O
objetivo da investigação visual empreendida por Nery, recorrendo aqui novamente
ao raciocínio de Baudrillard, é “reconstituir, como na anamorfose, a partir de
seus fragmentos, e seguindo uma linha quebrada e fraturada, a forma secreta do nosso
mundo”.
Com
essa obra Nery faz uma leitura radical e profunda sobre o duplo significado que
hoje é atribuído à imagem: em primeiro lugar, o sentido da adoração da imagem vazia
e publicitária de si mesmo; em segundo, como prisão que construímos para nós
mesmos neste terreno movediço, que é um labirinto, onde o próprio conceito de
real se transformou na ideia de imagem.
Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, atelier de
Fabricius Nery, fevereiro de 2014
Texto publicado originariamente em: